terça-feira, 20 de maio de 2014

FAMÍLIA E AUTO-SUPERAÇÃO




"Observa-te nas manifestações perante os amigos: traze o Evangelho mais vivo nas atitudes" (André Luiz). 



Em 01-05-2014; às 20hs. e 40mint.

Glória à Deus nas alturas e paz na Terra aos homens de boa-vontade. Fui agraciada pelo Senhor, meu Deus. O Senhor atendeu as minhas preces. Finalmente, o meu pedido ao Ministério Público de um aparelho para a reconstrução de face foi atendido pelo Estado. Logo passarei pela intervenção cirúrgica.

Eu precisei ter muita fé. Não a fé corriqueira das coisas prováveis, mas, aquela de entregar tudo nas mãos de Deus e esperar. Conquanto, ainda não havia essa possibilidade. Eu não podia deixar de acreditar em Deus, mesmo depois de doze cirurgias de reconstrução frustradas, ora pela absorção, ora pela rejeição, fases nebulosas da minha vida, de total instabilidade entre expectativas e frustrações, mas, sem deixar de esperar em Deus. Como todo procedimento cirúrgico, este também é evasivo, podendo ocorrer absorção do tecido ósseo. Cada organismo reage de forma diferente. Dos quais tenho conhecimento, todos obtiveram resultados positivos. Estou com a mente aberta e o coração em paz para receber o que o Universo enviar-me, e grata. Uma gratidão tão profunda que se esse for o meu último momento seguirei feliz.

Há muito, em minhas orações, desejava ver possível crescer o osso que me foi retirado por conta de um tumor (ameloblastoma), aos 24 anos de idade. Conta a idade de nascimento da minha única filha. Foram momentos difíceis, mas, nunca hesitei quanto ao seu nascimento. O médico, na ocasião, havia aconselhado a interrupção da gravidez para que não precisasse a extração total da mandíbula esquerda. Esperar nove meses seria muito arriscado, com chances de tomar o outro lado da face. Estava com três meses de gestação e já a amava mais do que a mim mesma. Já havia tentado engravidar durante dois anos sem sucesso. Quando já não mais esperava, fui tomada pela alegria da maternidade.

A gravidez foi difícil. Precisei fazer repouso absoluto para não sofrer aborto espontâneo já que apresentava sangramento desde o início. Tranquei o curso de Licenciatura em Química Aplicada, na UNEB - Universidade do Estado da Bahia. Estava cursando o último semestre, mas, nada era mais importante do que aquele ser que estava para vir ao mundo. Após o quarto mês, a gestação seguiu tranquilamente. Passaram os enjoos, o sangramento, agora seria somente a alegria de ser mãe. Não fiquei pensando no que seria do meu rosto, da minha vida após o parto. Enquanto pudia, desejei apenas ser feliz. O amor por ela compensaria todas as perdas possíveis.

Então, chegou o dia, o qual não podíamos mais esperar. O médico que acompanhava o desenvolvimento do tumor, que tomava o meu rosto silenciosamente, alertou-nos que não seria possível esperar mais do que vinte dias após o parto para o procedimento cirúrgico, ou, os danos seriam bem maiores e, possivelmente, irreversíveis. O tumor já avançava comprometendo o côndilo (articulação da mandíbula). Foi essa perda (côndilo) que dificultou a reconstrução da mandíbula. Dessa maneira, amamentando-a pela última vez, coloquei uma canção que seria o nosso hino de amor e perseverança - "Hey Jude", The Beatles.

As lágimas agora cobrem o meu rosto, como naquele instante. O mesmo sentimento de amor e de esperança, e, a certeza de ter dado o meu melhor. Não deixo nunca de repetir: "Se precisasse, faria tudo outra vez. Jamais desistiria dela e desse amor". 



Então, como a letra da canção diz "e a faça melhor", eu peguei a minha dor e fiz o melhor dela.

A última cirurgia ocorreu em 2011, para retirada total da prótese que havia quatro anos. Os pinos soltaram-se e foram expulsos pelo meu organismo. O médico desenganou-me. Disse não haver mais nada que se pudesse fazer neste sentido. Já estava frequentando a Casa Espírita, então, aprendi a olhar o sofrimento de outra forma. "_ Quer mudar? Então comece pelo pensamento. Quem no mundo pode recomeçar tantas vezes? Então, não lastime, agradeça" (Espiritualidade da Casa).

O Espiritismo não prega o sofrimento como Salvação. Ensina-nos o bem sofrer e o mal sofrer. Já que o sofrimento é necessário neste mundo de provas e expiações, é preciso aprender a olhar o sofrimento como algo positivo. A dor é inevitável, mas, o sofrimento é uma escolha. O sofrimento é do tamanho que o medimos. Todos podemos sair do estado de sofrimento cultivando pensamentos positivos. Colocando amor onde há dor.

Eu aprendi desde cedo, em minha orações, pedir a Jesus que mesmo diante de toda dor e sofrimento, eu pudesse sempre sorrir. E, que, ao sorrir, eu pudesse mostrar um pouco do Seu amor àqueles que sofrem. Eu nem imaginava que o meu sorriso ficaria "torto", é verdade, mas, eu jamais deixei de sorrir. Mais tarde, orava e pedia para que um dia meu osso pudesse crescer novamente, então, eu não mais precisaria de prótese e não mais haveria absorção ou rejeição.

Esse dia chegou, enfim. Será um procedimento um tanto quanto delicado e prolongado, denominado de "distração osteogênica". Será colocado um "distrator ósseo", um mecanismo que afasta uma parte óssea da outra, obrigando o osso a crescer neste espaço, já que as células ósseas tendem a se regenerar. A expectativa é de que o crescimento seja de dez centímetros, no prazo de quatro  a cinco meses. Depois, o "distrator" será removido. Então, será feita a reconstrução da gengiva e a colocação do implante dentário. Todo o tratamento tem previsão para dois anos.

Certa vez, a psicóloga que me acompanhou depois da amputação da mandíbula (hemimandibulectomia), disse-me que o motivo daquela doença seria, muito possivelmente, a "raiva" contida e que se enraizou naquele sentido. Ela disse-me que quando sentimos raiva, trancamos com força a mandíbula, rangemos os dentes iguais animais raivosos. A raiva não trabalhada pode ter sido causa desse tumor na mandíbula. A partir daí, começamos a trabalhar a raiva como uma emoção natural no ser humano. É natural sentir raiva, o que não se deve é negar esse sentimento, mas, conhecê-lo-lo e tratá-lo para que não aconteça de eclodir em forma de uma doença física. Muitas doenças, como o câncer, o cálculo renal, obstrução intestinal, têm causas emocionais, confirmando o que Emmanuel nos ensina: "as doenças físicas tem suas causas morais". 

Aprendi quando criança que era pecado sentir raiva da mamãe. A mamãe era para ser adorada como uma Santa, sem pecados. Sentia muita culpa. Aprendi, mais tarde, que pais também são humanos e que são imperfeitos como todos seres humanos. Os pais não somente ensinam, mas, também aprendem com os filhos. Eu aprendi muito ensinando a minha filha. 

Como ensina o Evangelho, "Certos pais, é verdade, descuidam dos seus deveres, e não são para os filhos o que deveriam ser. Mas, é a Deus que compete puni-los, e não aos filhos. Não cabe nem mesmo censurá-los, pois que talvez eles mesmos fizeram por merecê-los assim" (E.S.E. , cap. XIV; 3). Com os ensinamentos da Doutrina Espírita, aprendi a buscar perdoar e a me auto-perdoar.

Somente em 2009, descobri o mal que afligia o meu coração ao longo dessa minha existência e pude curar-me. Não conhecendo a causa de tanta rejeição, cresci acreditando que nem mesmo fosse filha legítima. Então, sofria com a rejeição. Foi através de uma terapia de regressão, podendo retornar ao útero materno, descobri que minha genitora havia tentado abortar-me. Percebi ela me afogando. Eu estava em seu ventre, era o líquido amniótico. Eu passei a vida inteira tentando chegar ao seu coração, fazia de tudo para que ela me amasse. E, ela passou a vida inteira negando a minha existência.

Como explica Drª. Anete Guimarães (psicóloga e parapsicóloga), quando o bebê é rejeitado, o Espírito adulto entende a rejeição. Isto porque, o Espírito que está reencarnado não é uma criança. Ele perde a consciência de Espírito adulto entre os três e sete anos. Ele escuta o que a mãe está dizendo: "eu não quero você". Segundo Drª. Anete, dependendo do grau evolutivo do Espírito, ele pode ou não assimilar esse ódio. Assim, o transtorno é do Espírito. Os pais podem atenuar ou agravar o problema, mas, o agente responsável pelo seu transtorno é o próprio Espírito. A mãe é co-responsável. Se o Espírito tiver algum grau evolutivo ele não irá assimilar esse ódio e irá buscar esse amor. Tudo vai depender do potencial que esse Espírito trás.

Foi aos meus doze anos de idade que ela declarou não me suportava e, que, iria "tirar o cheirinho de queijo" (ditado pernambucano) do meu pai comigo, o que significava acabar com o nosso "chamego". Devido ao seu ato impensado contra a minha vida, eu nasci com problemas neurológicos e meu pai, acreditando que eu não "vingaria", debruçou-se de cuidados sobre mim. Dessa forma, ficamos muito próximos, cheios de amor um pelo outro, o que acentuou os conflitos conjugais já existentes e, gerou muita ira familiar contra mim. Então, naquele dia, resolvi afastar-me de meu pai para que ela pudesse me amar. De nada resolveu.

Lembro-me de quando se fez cumprir, pela primeira vez, a sua promessa. Era dia das crianças, como havia completado meus doze anos, e saído da infância, meu pai deu-me de presente o meu primeiro relógio. Junto com o relógio, deu-me a minha última boneca, "boneca mãezinha" da Estrela. Era meu sonho ter uma mãezinha, ouvir a musiquinha de ninar e vê-la embalando no colo seu bebezinho. Então, minha mãe arrancou-me ela das mãos e a entregou à minha irmã, dizendo que eu já havia ganhado um relógio, e trocou as nossas bonecas. Desejei não ter crescido. Eu queria tanto aquela mãezinha! Tirasse-me o relógio. Minha irmã jamais brincou com a boneca, e jamais deixou que eu a tocasse. Passou, dessa forma, a sentir-se preterida e, a olhar-me como a "princesinha" da casa, aumentando os conflitos existenciais.

"Honra a teu pai e a tua mãe", está no Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XIV. Contudo, honrar não é amar. Honrar é ter respeito, ter gratidão por aqueles que nos doou elementos necessários para formar o nosso corpo físico e deu-nos o cuidado para crescermos. Amar é mais difícil, pois, os filhos podem ser amigos ou inimigos de outra existência. A família é um núcleo onde se irá aprender esse amor.

Porque estamos no mundo de provas e expiações, a família também é uma prova ou expiação. Não podemos amar a família universal sem antes aprendermos a amar aquela família mais próxima, a nuclear (pai, mãe e filhos). Como colocou muito bem Nazareno Feitosa, em sua palestra, a família é um grande laboratório onde iremos experimentar os problemas que teremos que enfrentar no mundo. Segundo André Luiz, "nós atraímos as experiências que precisamos passar aqui na Terra" (Entre a Terra e o Céu). O Espiritismo dá-nos a consciência de reencarnar nesta ou naquela família que não é a que gostaríamos, mas, a necessária, a mais adequada para o nosso aperfeiçoamento moral. São as dificuldades vencidas que fará o Espírito evoluir. Assim, a família não é um problema, é um desafio para auto-superação (Nazareno Feitosa).

Segundo Almeida e Marques (Família: frente e verso), uma das funções da família é nutritiva, ou seja, dar proteção, alimentação, afeto, educação, espiritualização, instrução, etc. Outra função é normativa: orientação, responsabilidades, disciplina, respeito, regras, autonomia e limites. Está no Livro dos Espíritos, Q. 208, "...os espíritos têm que contribuir para o progresso uns dos outros". Conquanto, auxiliar no progresso não é tomar a responsabilidade sobre si. Assim, é tornar-se vítima. Ou seja, por mais que os pais sejam negligentes com a educação dos seus filhos, estes são responsáveis por suas escolhas. Os pais responderam por seus atos diante do Altíssimo. Mas, dar-lhes a total responsabilidade sobre o comportamento dos filhos é negar o livre-arbítrio.

A reencarnação é a mais sábia e justa das leis. Com o concurso do esquecimento do passado, a reencarnação aproxima os Espíritos através dos laços de consanguinidade. É na família corpórea que o Espírito exercita a sua capacidade de amar. É a infância o período mais acessível para o Espírito reencarnando se aperfeiçoar (L.E. Q. 383).  Para Emmanuel, "a melhor escola ainda é o lar". E, são as funções normativas que irão contribuir para o seu adiantamento "...na esperança de que seus conselhos os encaminhem por melhor senda" (L.E.)Os Espíritos que avançam na senda do progresso sentem-se no dever de voltar ao corpo para auxiliar os retardatários.

André Luiz diz que a família "é o centro de indução mais poderoso que existe no Universo" (Mecanismos da Mediunidade). Daí a importância desse período, dessa proteção e da condução dos pais aos filhos que lhe são confiados (Nazareno Feitosa). Deus irá perguntar: "Que fizeste da criança confiada a vossa guarda?" (E.S.E.).

Emmanuel vem esclarecer que é no trato com as pessoas que devemos ser mais rigorosos. Devemos buscar e exaltar o que há de melhor no outro. Muitos pais só criticam o comportamento dos filhos e terminam por gerar a baixo auto-estima. Muitas dificuldades de relacionamentos estão associadas a baixo auto-estima. Este sentimento negativo pode levar a depressão obsessiva. Elogiar é recarregar a energia. Elogiar é enaltecer uma característica, não é uma recompensa ou gratidão. Todos gostamos de ter os esforços reconhecidos. O elogio adequado é um instrumento de auto-superação.

Sabemos hoje, pela Doutrina Espírita, que muitas relações familiares são desfeitas pela influência dos maus Espíritos. Estes atacam núcleos familiares através da obsessão, interrompendo a "marcha do progresso", como coloca Nazareno Feitosa, e buscam disseminar a discórdia, a desunião. Bem como, provocar os transtornos psiquiátricos, depressão, uso de drogas, suicídio, etc. Daí a necessidade de preservar o casamento. "Conflitos entre os pais afetam profundamente os filhos desencadeando muitos males que contaminam a todos dentro do lar, prejudicando a concretização dos projetos espirituais estabelecidos para a família. Influências funestas e maus exemplos do casal são, em geral, causa de transtornos psíquicos, espirituais e morais dos filhos, especialmente, daqueles que lhe estão vinculados por processos cármicos mais difíceis" (O SEAREIRO, agosto/2011, ano XVIII, nº. 96).

É muito doloroso e delicado para mim, neste momento, expor as minhas experiências. Porquanto, quando relatamos fatos de nossa existência, também, acabamos por expor pessoas que fazem ou, de certo modo, fizeram parte do nosso caminho. Eu não estarei aqui julgando, mau-dizendo, ou, nem mesmo, lastimando a minha sorte, pois que, não sou vítima, como ninguém o é. Hoje, após abraçar a Doutrina Espírita, compreendendo que foram escolhas minhas, resigno-me. Estarei apenas, apesar da tristeza que ora estou envolta, a relatar os fatos como eu os percebo. Posso estar equivocada, pois compreendo que as partes também têm as suas próprias percepções e, que, muito provavelmente, não sejam iguais.

Cada pessoa tem uma visão diferente sobre um mesmo acontecimento. Todos podemos ver um mesmo ponto sob uma ótica diferente. Aprendemos de acordo com as informações captadas por nosso cérebro, a cada movimento da vida. E, a vida não se movimenta num único sentido, numa mesma direção. Muito embora o cenário pareça o mesmo, o grande cenário da vida é composto por vários personagens chamados indivíduos (pessoa única, singular). Cada um irá representar o seu papel dá forma que o cérebro captar aquela informação, dando um sentido próprio ao movimento. É, mais ou menos, como explicam alguns estudiosos sobre a "neuroplastidade" -  a flexibilidade que o cérebro tem de captar informações através de estímulos externos (visuais, auditivo, olfativo, tátil, etc.) e, transformá-las em aprendizagem. Assim, não podemos falar em uma verdade absoluta, todos estamos certos e errados ao mesmo tempo. Todos estamos tentando dar à vida uma melhor interpretação.

Abandonei o curso de Química, definitivamente. Havia enchido-me de coragem para retomar o curso. Então, no dia da matrícula, encontrei alguns colegas. Uns foram calorosos, acolhendo-me com sua  amizade. Outros pareciam "chocados" com a minha deformidade física e nada falaram, apenas seus olhos. Foi então, que uma simples frase, nocauteou-me: "Nossa! Você está horrível!". Atingiu-me como uma "bomba" e o meu mundo caiu! Naquela época, aos 19 anos, eu havia participado de curso de modelo, desfilava, fotografava e começava a participar de publicidade para TV.

Abandonei a dança, que fez parte dos meus sonhos desde cedo. Lembro-me, amargamente, que sendo aceita para iniciar com o grupo de dança folclórica (que eu tanto sonhei), no dia do teste, que era de interagir com a platéia em uma apresentação no SENAC, Pelourinho/BA, eu paralisei. E, chorei. Eles (dançarinos) eram lindos demais ali dançando, eu estava "feia", "deformada". Parecia que se eu entrasse, naquele momento ao palco, os olhares se voltariam para o meu rosto, ou, melhor, para a parte que faltava do meu rosto. Então, diante da platéia, do meu marido e da minha filhinha que esperava ansiosa, eu desisti e nunca mais dancei. Eu não cabia mais no palco. Há pouco, assistindo a comemoração de 25 anos do grupo, desejei não ter desistido. Estive tão perto, mas, não tive força para continuar. Eu dizia desde muito cedo: "eu nasci pra brilhar!". Contudo, deixei apagarem-se as luzes da ribalta sem concluir o espetáculo da vida.

Tranquei-me dentro de casa. Tranquei-me dentro de mim. Eu que sempre lutei por tudo que sonhava não mais me permitia sonhar. Não frequentava mais festas, não frequentava mais praias ou lugares públicos. A cortina do grande palco, que é a vida, fechou-se para mim. Coloquei-me fora de cena e passei a assistir a vida passar do lado de fora, agora não mais como protagonista da história, apenas como platéia. Nada mais fazia para mudar o rumo dessa história. Entreguei as rédias da minha vida.

O divórcio aconteceu, inevitavelmente, dez anos após a retirada da minha mandíbula, ou, da minha retirada de cena. Eu, durante seis anos após o trauma, não aceitava que precisava de acompanhamento psicológico para trabalhar a perda daquela parte que compunha o meu corpo físico, e, nem jamais acreditara que meu corpo etéreo estava comprometido pela mágoa. Sofri durante longas datas por me considerar somente este corpo físico. Não captei a informação de que somos muito mais do que essa matéria bruta. Só retomei à vida quando cheguei ao fundo do abismo e tentei abreviar a minha própria existência. Já que não havia mais vida em mim, para que continuar a existir?

A partir de então, retomei as rédias da minha própria vida e deixei de me colocar no lugar de  vítima.  Dei-me conta de que sou muito mais do que uma mandíbula. Sou mais do que um rosto. Aprendi que sonhos a gente reconstrói. Sai do casamento ainda ferida, mas, decidida a vencer e superar toda essa dor. Resolvi, também, libertá-lo do compromisso. A partir do momento em que confessou estar comigo sem nada mais sentir além de um amor fraterno e por não desejar me desamparar naquela situação, por me considerar "frágil", e, sentir-se responsável, pois que, havia lhe dado uma filha, resolvi divorciar-me e retirar-lhe esse peso dos ombros. Compreendi que eu não mereço "pena", não sou "coitada". Eu mereço amor. E, que, esse amor teria que começar de dentro mim, para comigo mesma.

O Espiritismo não prega o divórcio, ao contrário. Contudo, em muitos casos, é necessário para evitar um mal maior, contrair-se mais débitos. O casamento deve ser mantido somente por amor, como ensina o Evangelho, não por outros interesses (beleza, riqueza, etc.). O mais importante na separação conjugal é não se separar dos filhos, como colocou Nazareno Feitosa. "O problema não é a separação conjugal, mais a separação da família". Existe ex-marido, ex-esposa, ex-namorados, porém, não existe ex-filho.

A minha separação deu-se amigavelmente. Aconteceu quando ainda havia respeito entre os dois. Muitos casais tornam-se inimigos porque só se separam quando não há mais nem respeito um pelo outro. Neste caso, é melhor que se separem para evitar uma tragédia. Mágoas sempre irão existir numa separação conjugal. Principalmente, quando um deseja e o outro não. "São laços interrompidos, mas, não rompidos" (O SEAREIRO, agosto/2011, ano XVIII, nº. 96). Eu precisei de muita coragem para tomar esta decisão. Era cômodo continuarmos casados. E, as pessoas não devem se acomodar a uma situação, é preciso estar bem, e,  nós, já não estávamos.

Minha filha foi o meu sustentáculo. Ela sempre foi muito precoce. Sempre pareceu ser emocionalmente mais forte, ser a "mãe" da relação. Creio que em outra existência tenhamos tido os papéis trocados. Foi na sua fortaleza que me reestruturei e consegui seguir em frente. Quando diante das dificuldades que apareciam, eu fraquejava, ela dizia-me: "_ Mamãe, escute a voz do seu coração". Eu havia ensinado isto para ela, e, nos momentos difíceis ela me lembrava.

Em nenhum momento demonstrou traumas com a separação. Nós não deixamos ela sentir a nossa falta, eramos sempre presentes. Em nenhum momento da separação usei-a para chantagens emocionais ou para adquirir quaisquer benefícios. Em nenhum momento eu a coloquei contra o pai, sempre ensinando-lhe a respeitá-lo. O problema era entre nós dois, ela não deveria se sentir jamais culpada ou sofrer as consequências de nossas escolhas. Ela foi tão amada por nós dois, estava tão segura deste amor, que jamais pediu que reatássemos, ao contrário, apesar de sua pouca idade (10 anos) preferia ver a nós dois separados e felizes, do que juntos e cada um no seu canto, infeliz. A criança percebe todos os movimentos dos pais. Quando não estamos felizes contaminamos àqueles que estão próximos. Assim como a alegria é contagiante, a tristeza também é.

Aprendi que ninguém é a metade do outro e que não estamos aqui na Terra para "salvar" ninguém. O Espírito Hamed ensina que devemos fazer caridade sem salvacionismo. Ninguém é responsável pela felicidade do outro. A felicidade é uma conquista pessoal e intransferível, porque a evolução é uma conquista pessoal. Como coloca Emmanuel, "a evolução é um caminho solitário". Se conseguirmos nos auto-aperfeiçoar já fizemos uma boa caminhada.

O Livro dos Espíritos, questão 298, responde a essa questão: "_ As almas que deverão se unir estão predestinadas a essa união, desde a sua origem e cada um de nós tem, em alguma parte do Universo, sua metade à qual se reunirá fatalmente, um dia?".  Os Benfeitores afirmam que não há união particular e fatal entre duas almas. A união existe entre todos os Espíritos, mas em grau diferentes, de acordo com a perfeição que adquiriram. Um auxilia o outro na evolução moral, mas, ninguém completa o outro. Somos todos Espíritos completos, apenas faltando-nos Deus.

Dizer que algo está destinado a acontecer é "determinismo". Há uma programação para que as coisas aconteçam, mas, nada está determinado a "ter que ser". Quantas penas podemos diminuir praticando o bem? Quanto males maiores podem ser evitados divorciando-se? O casamento não precisa durar até que a morte os separe. Somente o verdadeiro amor é eterno, é uma lei imutável. "A indissolubilidade absoluta do casamento é uma lei humana muito contrária à lei natural. Mas os homens podem mudar suas leis: só as da natureza é imutável" (L.E. Q. 697).

Hoje, eu e o meu ex-marido somos verdadeiramente amigos. Ajudamo-nos mutuamente, na saúde e na doença. O nosso amor é fraterno, é um bem-querer sem nada esperar em troca. As "lesões afetivas" (Nazareno Feitosa) foram curadas. Não penso que o nosso casamento não deu certo, mas, que cumpriu o seu tempo e a sua função. Penso que quitamos alguma dívida do passado, que é a proposta da reencarnação, da união conjugal e dos laços de família, e, que somos agora Espíritos que verdadeiramente se amam. O amor Espiritual é a lei da natureza, por isso, eterna. Não se rompe. A nossa união não foi rompida, mas, interrompida momentaneamente, porque já cumprimos os propósitos Divinos dentro do casamento. Logo, deu certo. Seguiremos unidos, porque já aprendemos a nos amar como irmãos em Cristo.

Eu e minha mãe continuamos tentando nos afinar afetivamente. Quando saí de casa (1987), disse-lhe que esperava, com isso, que nos tornássemos amigas já que não havíamos conseguido ser mãe e filha. Passaram-se longos anos de conflitos e agressões, e, somente hoje estamos conseguindo superar algumas das nossas diferenças. Ela já consegue, timidamente, dizer que me ama. Eu já consigo aceitar como verdadeiro o seu amor. Depois que ela conheceu a Doutrina Espírita vem se reformando moralmente, aos poucos. Bem como, eu também tenho procurado melhorar-me. Não é uma caminhada fácil. Mas, quem falou que seria? Estamos bem melhores, e, com isso, toda a família vem se reconciliando, ou, ao menos, respeitando-se mais.

Acredito que ainda teremos um longo caminho a seguir na escalada para a evolução espiritual. Contudo, creio que já demos o primeiro passo na direção. Pude compreender meu sofrimento e a sua rejeição. Sei que apesar de nada justificar um aborto, compreendo que o seu desespero nasceu por não compreender os ensinamentos do Pai Celeste. Eram tantos os mistérios que lhe foram passados! Ela reconheceu a sua falta e se propôs a conhecer mais e praticar mais o Evangelho. Tem se esforçado muito, pois, a idade já está avançada e alguns vícios são difíceis de serem vencidos, porque já existe nela um certo "prazer" nessa relação com o sofrimento. É como um auto-flagelo.

O sofrimento, para ela, é como uma punição merecida para se "redimir dos pecados". Creio que este seja o ponto mais penoso para que se consiga removê-la desse processo de depressão obsessiva. Compreendo porque passei por isso. Eu também já me senti tão culpada pelos meus maus pensamentos que acreditava merecer sofrer punição. Não sabia de onde esses pensamentos negativos brotavam, por isso, acredito que é realmente preciso o auto-conhecimento. Como dizia o filósofo na Antiguidade e o Espiritismo veio confirmar: "Conhece-te a ti mesmo".

É preciso, muitas vezes, refazer o caminho de volta para poder se reencontrar. Reencarnar em uma determinada família pode significar a oportunidade de refazer este caminho e de se auto-superar. Depois de retornar ao ventre materno consegui encontrar a direção. Não que todos tenham que passar pelo mesmo processo. Cada um irá encontrar o seu próprio caminho. Depois da Doutrina Espírita conheci a eficácia do auto-perdão e o poder da auto-cura e, aprendi a curar o outro através do perdão. Entendo, hoje, que retirar a culpa do outro (desculpar) é aliviar-lhe o peso da cruz e que reduzir o remorso através do perdão é também caridade. Sinto-me agora um pouco mais liberta, como todo Espírito anseia ser. Talvez, por isso, esteja sendo-me permitido reconstruir a minha face. Que Assim Seja!

Luz e Amor!




"Sede bons e caridosos: eis a chave dos céus, que tendes nas mãos. Toda a felicidade eterna se encerra nesta máxima: "Amai-vos uns aos outros". A alma não pode elevar-se às regiões espirituais senão pelo devotamento ao próximo; não encontra felicidade e consolação senão  nos impulsos da caridade..." 

(Que a mão esquerda não saiba o que faz a direita, cap. XIII; 12. O Evangelho Segundo o Espiritismo).